terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

H. Miguel Bombarda III

Fotografia minha.

 

“(…) todas as noites a policia, os bombeiros ou a indignação da família vinham ali abandonar, como um vazadouro derradeiro, os que tentavam em vão emperrar as engrenagens do mundo escaqueirando o quinane do quarto, descobrindo estranhos bichos invisíveis apalpados nas paredes, ameaçando os vizinhos com  a faca do pão ou escutando o imperceptível assobio dos marcianos que a pouco e pouco se vestem de colegas de escritório (…). Havia também os que se apresentavam sozinhos, braços de fome (…) a troco de uma cama onde dormir, clientes habituais que o porteiro reenviava.”

Fotografia minha.

Todas as semanas, num determinado dia, eramos confrontados com novas realidades. Desta feita, percorrendo estes corredores, chegamos à enfermaria X, masculina. Porta fechada. Tocamos à campainha e, acompanhado de um som estridente, ouviram-se as chaves na porta, surgindo do outro lado, uma enfermeira.

"Até aos anos 1980 viveram em grandes camaratas, não tinham armários. Só há 10 a 15 anos passaram a ter espaço para os seus pertences", recorda Álvaro Carvalho.”

Fotografia retirada da net.

 Passamos por um local idêntico a este mas, mais pequeno, com armários e mesas de cabeceira, que se percebia estarem personalizas. “Idália Cardoso, que ficará como a última enfermeira-chefe do Hospital Miguel Bombarda, lembra-se de alterações no seu tempo. Uma delas foi quando os doentes deixaram de andar de uniformes iguais, prática que se lembra de existir até final da década de 1990, para passarem a vestir a sua própria roupa, e o efeito que isso teve nas relações entre as pessoas. "Passaram a cuidar mais da imagem, recebiam elogios".

Olhos que viam, sem ver, acompanhavam-nos enquanto fomos conduzidos para uma sala de consulta. Foi-nos apresentado um doente entrado nas urgências na noite anterior. Na casa dos vinte anos, de negro vestido, entrou sendo convidado pelo professor, que de novo lhe explicou porque estava ali e quem eramos. Sentou-se e, sendo nós muito poucos, olhou-nos rapidamente com uma mistura de ausência e timidez. Eramos meros observadores, só intervindo se tal nos fosse permitido. O discurso era desconexo e as palavras quase não se percebiam. Com muita calma e persistência a consulta foi decorrendo. No fim, perante a resposta a uma questão, fomos incitados a interagir. Lembro-me do seu olhar sobre mim nesta fase, mas não quis ser eu a questioná-lo, dei abertura aos colegas, calando aquilo que deveria ter dito, mas que, afinal, foi verbalizado pelo seu médico, nosso professor. Porque calei? Porque pelo que observava, sentia o sofrimento. Se devia ter feito a minha observação? Devia! Mas, não estava certa ainda de que a minha intervenção fosse  adequada e não queria, sem intenção, abrir uma nova ferida.

Aprendi, nesta sessão, que devia dar mais “ouvidos” à minha "intuição", encontrando o equilíbrio entre aquilo que a ciência me ensinou e aquilo que de endógeno tenho.


António Lobo Antunes, Memória de Elefante, p. 45

Catarina Gomes, Jornal “Publico”, 2011/07/31

Foto retirada de: http://aparteoutsider.org/?page_id=74


PS: Se clicarem na segunda fotografia, poderão ver o tecto a ruir.



14 comentários:

  1. A história, no caso bem recente, traz-nos à luz coisas interessantíssimas de que não fazíamos ideia.
    O HMB foi sempre, se a memória me não falha, o parente pobre dos poucos hospitais psiquiátricos existentes.

    A página 45 da 'Memória de Elefante', superiormente escrita e descrita por António Lobo Antunes, arrepia.

    Grato pela partilha de tão importante conteúdo.
    Um abraço, Alexandra.

    ResponderEliminar
  2. A mente humana é muito complicada de entender. A psiquiatria, na minha opinião, é das medicinas mais difíceis de exercer, tomando em linha de conta, o profissionalismo de quem exerce.
    Gostei muito da narrativa. Estórias antigas que, na sua essência, são parecidas e/ou iguais às de hoje.
    .
    Uma semana feliz. Cumprimentos
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

    ResponderEliminar
  3. Alexandar, deduzo que na época desta sua narrativa, era ainda inexperiente, teve receio de seguir a sua intuição... acho que esta "lição" tornou-a uma pessoa e uma profissional mais exigente, dedicada e atenta.

    As doenças do foro mental e as neurológicas, deixam-me sempre angustiada, talvez porque vivi a primeira com a minha mãe, já na sua fase final e vivo a segunda quando o meu filho, quando tem crises de epilepsia. Nessa época, quem sabe, estariam caminhando nesses corredores...

    Um beijinho grato

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Fê, nessa época era estudante de psicologia clinica, logo, os medos (porque também os temos) também se faziam sentir. Mas sim, acho que de alguma forma esta lição, como bem diz, foi um "abrir olhos" da qual nunca me esqueci e que acabei por assimilar, não me tendo dado nada mal por isso.

      As doenças do foro mental e as neurológicas, deixam-nos a todos angustiados/assustados. Muito mais para quem teve que lidar com elas sendo os doentes tão próximos. A epilepsia, nomeadamente, pode causar grandes traumas a quem é "tratador", visto que as crises podem ser muito agressivas e, a sensação de impotência é bastante acentuada.

      Lamento que tenha tido tão más experiências!

      Um beijinho, Fê e obrigada.

      Eliminar
  4. Um edifício, que terá assistido a tantas histórias... e dramas pessoais!
    Faz-me impressão, encontrar-se ao abandono... e não lhe arranjarem um propósito bem mais digno... seja ou não na área de serviços que prestava...
    Gostava imenso de Lobo Antunes... até lhe ler uma opinião sobre Fernando Pessoa... a partir daí, passei a vê-lo com olhos... de quem já não gosta de ler uma pessoa com ressentimentos e preconceitos... sobretudo para com um grande talento que não se pode defender, por parte de quem sofre de miudezas da alma... mais concretamente... dores de cotovelo, em matéria de reconhecimento literário...
    Beijinhos! Votos de uma boa semana, estimando que tudo esteja bem, aí desse lado!
    Ana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Jamais apreciei Lobo Antunes, pela sua agressividade gratuita, pela sua misogenia e pela presunção de ser o melhor escritor de todos os tempos.

      Tudo de bom , Ana

      Eliminar
  5. Chocou-me saber que usaram uniforme até tão tarde, pois isso acentua o aspecto concentracionário e a falta de individualidade.

    Parece-me não respeitar a privacidade do doente, já de si confuso, essa consulta pública.

    Boa tarde, Alexandra.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. São, todo este assunto é chocante e, a psiquiatria enquanto tratamento só há bem pouco tempo evoluiu.

      Compreendo o seu comentário no que se refere à privacidade do doente, mas, para quem aprende, se não fôr confrontado com a realidade nua e crua, de nada lhe serve a teoria. A pessoa em causa, apesar de descompensado, consentiu a "consulta pública". O nosso professor, médico dele, falou com ele antes. Eramos quanto muito, 5 ao todo, contando com o doente, pois em aulas práticas, as turmas eram divididas em grupos pequenos, sendo que nesta altura, eramos finalistas.

      No entanto, aceito e compreendo a sua postura.

      Um beijinho.

      Eliminar
    2. Concordo: a teoria é uma coisa , a prática é outra, sem dúvida. Porém, imaginei eu que o médico estaria a sós com o doente e os alunos assistiriam através de um vidro próprio numa outra sala. Se calhar, ando a ver demasiados filmes ... :)

      Quanto a Lobo Antunes, não criatura que aprecie, pelas razões que disse a Ana Freire.

      Beijinho

      Eliminar
    3. São, não anda a ver filmes a mais :)) contudo, a realidade é a que lhe descrevi.

      Quanto a Lobo Antunes, tem de facto uma linguagem pouco comum e até agressiva, crua, mas este foi o primeiro e, até agora, único livro que li dele, embora tenha pelo menos mais um para ler. Contudo, este está de facto, relacionado com a sua vivência enquanto psiquiatra no Miguel Bombarda.
      Li o que a Ana comentou, mas ainda não tive oportunidade de pesquisar. De qualquer forma, reconheço que não é uma personalidade muito agradável.

      Obrigada.

      Beijinho

      Eliminar
  6. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  7. "Memória de elefante" foi o único livro que li de Lobo Antunes. O esforço para chegar ao fim foi brutal.
    Tentei outros, mas nunca consegui passar das primeiras páginas. Desisti do psiquiatra escritor.
    Mas... não desistirei de seguir o triste fim do Hospital Miguel Bombarda.
    Beijo.

    ResponderEliminar
  8. O Hospital prestou bons serviços no seu tempo...

    Não aprecio a esccrita de Lobo Antunes porque a acho teatral, espetacular, sem sinceridade, própria para embasbacar...

    Gostos não se discutem...

    Bom fim de semana. Beijinhos
    ~~~~~

    ResponderEliminar
  9. Hola a todos mi nombre Ximena Jimena de Cuba quiero usar este medio para informar al mundo sobre cómo me curé del herpes al principio cuando tuve síntomas en 2014 me hice la prueba y salió positiva perdí la esperanza de mejorar relación o matrimonio, todo cambió cuando conocí al Dr. Itua, me comuniqué con él y le expliqué todo y me dijo que tenía la cura, así que decidí pedírsela, así que lo hice después de 2 semanas, me hice la prueba y obtuve un resultado negativo. Estoy eternamente agradecido con él. Él también puede curar.
    vph
    vih/sida
    epilepsia
    anemia falciforme
    diabetes
    EPOC
    esterilidad
    cáncer
    verruga
    soriasis
    pitiriasis rosada, etc.
    correo electrónico: drituaherbalcenter@gmail.com www.drituaherbalcenter.com

    ResponderEliminar