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Fotografia minha. |
“(…) todas as noites a policia, os bombeiros ou a
indignação da família vinham ali abandonar, como um vazadouro derradeiro, os
que tentavam em vão emperrar as engrenagens do mundo escaqueirando o quinane do
quarto, descobrindo estranhos bichos invisíveis apalpados nas paredes, ameaçando
os vizinhos com a faca do pão ou
escutando o imperceptível assobio dos marcianos que a pouco e pouco se vestem
de colegas de escritório (…). Havia também os que se apresentavam sozinhos,
braços de fome (…) a troco de uma cama onde dormir, clientes habituais que o
porteiro reenviava.”
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Fotografia minha. |
Todas as semanas, num determinado dia, eramos confrontados
com novas realidades. Desta feita, percorrendo estes corredores, chegamos à
enfermaria X, masculina. Porta fechada. Tocamos à campainha e, acompanhado de
um som estridente, ouviram-se as chaves na porta, surgindo do outro lado, uma
enfermeira.
"Até aos anos 1980 viveram em grandes camaratas, não
tinham armários. Só há 10 a 15 anos passaram a ter espaço para os seus
pertences", recorda Álvaro Carvalho.”
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Fotografia retirada da net. |
Passamos por um local idêntico a este mas, mais pequeno, com armários
e mesas de cabeceira, que se percebia estarem personalizas. “Idália Cardoso,
que ficará como a última enfermeira-chefe do Hospital Miguel Bombarda, lembra-se
de alterações no seu tempo. Uma delas foi quando os doentes deixaram de andar
de uniformes iguais, prática que se lembra de existir até final da década de
1990, para passarem a vestir a sua própria roupa, e o efeito que isso teve nas
relações entre as pessoas. "Passaram a cuidar mais da imagem, recebiam
elogios".
Olhos que viam, sem ver, acompanhavam-nos enquanto fomos
conduzidos para uma sala de consulta. Foi-nos apresentado um doente entrado nas
urgências na noite anterior. Na casa dos vinte anos, de negro vestido,
entrou sendo convidado pelo professor, que de novo lhe explicou porque estava
ali e quem eramos. Sentou-se e, sendo nós muito poucos, olhou-nos rapidamente com
uma mistura de ausência e timidez. Eramos meros observadores, só intervindo se
tal nos fosse permitido. O discurso era desconexo e as palavras quase não se
percebiam. Com muita calma e persistência a consulta foi decorrendo. No fim,
perante a resposta a uma questão, fomos incitados a interagir. Lembro-me do seu
olhar sobre mim nesta fase, mas não quis ser eu a questioná-lo, dei abertura
aos colegas, calando aquilo que deveria ter dito, mas que, afinal, foi
verbalizado pelo seu médico, nosso professor. Porque calei? Porque pelo que
observava, sentia o sofrimento. Se devia ter feito a minha observação? Devia!
Mas, não estava certa ainda de que a minha intervenção fosse adequada e não queria, sem intenção, abrir
uma nova ferida.
Aprendi, nesta sessão, que devia dar mais “ouvidos” à minha "intuição", encontrando o equilíbrio entre aquilo que a ciência me ensinou e
aquilo que de endógeno tenho.
António Lobo Antunes, Memória de Elefante, p. 45
Catarina Gomes, Jornal “Publico”, 2011/07/31
Foto retirada de: http://aparteoutsider.org/?page_id=74
PS: Se clicarem na segunda fotografia, poderão ver o tecto a ruir.